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Janaína Michalski

Você já deve ter ouvido um bocado de gente dizer que adora o mar. Eu sou igual a todo o mundo: amo o mar. Muito mesmo. E adoro usar o mar como exemplo pra falar de alguma coisa que não sei explicar direito. Aí a pessoa já sabe que o assunto é profundo, misterioso, enorme.

Sabe, apesar da imensidão, pra mim o mar nunca significou separação, mas união. Foi ele quem construiu o Brasil, ao trazer pra cá mais de dez milhões de africanos na era colonial e quase seis milhões de imigrantes de vários países do mundo, a partir do século XIX.

Mas foi em 1957 que o mar trouxe pro Brasil a pessoa mais importante de todas as pessoas importantes trazidas por ele: minha mãe. Ela e a família embarcaram no primeiro navio possível, após o ultimato de um governo nazista do Egito. Foi uma viagem longa, com uma parada de um mês na Itália, por causa de doença na família, e mais um mês a navegar. Metade desse tempo a menina de 11 anos levou para enxugar as lágrimas e se conformar com as raízes arrancadas. Na outra metade da viagem, ela se dedicou a estudar a língua do país no qual chegaria. Passou dias e noites mergulhada no único livro em língua portuguesa que havia no navio. Uma gramática de português de Portugal.

No porto de Santos, sem ainda imaginar que estava sendo abençoada por todos os santos, minha mãe, aquela menina, fez uma promessa. Sem nem saber o que era promessa ainda. Inconformada por não conseguir pronunciar um “a” na língua daqui, numa rasgada necessidade de se reconstruir, fazer laços e criar novas raízes, ela jurou: dominaria o português. Sem nem saber o que era jura ainda.

Depois que minha mãe se formou em Letras e virou mestre em Literatura Brasileira, eu nasci. Meu nome, Janaína, ela tirou de um poema do pernambucano Manuel Bandeira. No Rio Grande do Sul, durante as festas juninas, ela me vestia de prenda gauchesca. Depois, quando fomos morar em Rondônia, porque ela foi lecionar na universidade de lá, descobrimos os vestidos de lese, que me transformavam numa princesinha caipira. Mais tarde, em Brasília, nas apresentações de balé clássico, ela dizia que a única diferença entre mim e as bonecas russas das caixas de música é que eu sorria.

Cresci indo às praias, aos igarapés, às serras e às cachoeiras de todo o Brasil. Festejávamos Pessach, Natal, Rosh Hashaná, São João. Comíamos acarajé, musse de cupuaçu, feijoada, caldeirada de tucunaré, tabule com quibe cru. Eu estava sempre no meio das feiras, das capoeiras, dos sambas e das óperas que ela adorava ouvir, especialmente enquanto limpava a casa.

Eu já era quase uma professora quando uma zombação me tirou o rumo. “Janaína Didio Michalski! Que nome esquisito, nada combina com nada!”, gargalharam minhas colegas da escola de normalistas no Rio de Janeiro. Concordei com elas e achei que deveria me chamar Sarah, Veruska ou Natasha. Tive uma crise de identidade que parecia não ter fim: Sou judia? Cristã? Espírita? Não tenho sotaque, não tenho cara de estrangeira, não me pareço com uma brasileira… “Eu não sou daqui!”, gritou meu coração.

Com um grande pacote de tudo o que eu tinha sido e achava que não era mais, ou do que eu ainda era e achava ser um completo absurdo, bati à porta de minha mãe. Reclamei da descombinância do nome, da incoerência das escolhas, das múltiplas cidades, do singular sincretismo de religiões, da falta de centro no meu interior.

Numa calma de maré baixa, a doutora em Ciências da Linguagem me disse que eu era apenas Janaína, uma rainha. E rainhas não precisam ser de lugar nenhum porque são de todos os lugares ao mesmo tempo. Àquela confusão empacotada de mim mesma ela disse ser brasilidade: um infinito de cores, pessoas, lugares, formas, sons. Dentro desse infinito, não haveria a possibilidade de me centrar. Infinitos não têm centro. E são belos porque são uma mistura e não uma combinação de coisas. E também não têm explicação porque a beleza nem sempre se traduz em palavras.

Sentindo-me enlaçada no balanço das ondas do mesmo mar que a trouxe para o Brasil, ouvi de minha mãe que eu era sua promessa cumprida: sua Janaína, sua brasilidade, sua raiz aqui. E que isso era mesmo muito difícil de explicar. Mas que se eu mesma ou outro alguém insistisse em querer saber, era para eu simplificar dizendo que sou dona Janaína, rainha do mar.